Coisa de Criança
Se olharmos nosso cotidiano e observarmos as crianças poderemos perceber que há um limite bastante tênue entre o mundo da criança e o mundo do adulto. Mas, na verdade, essa reflexão nos leva a importantes desdobramentos. Por aqui, terão destaque apenas alguns, para iniciarmos a questão.
É bom ou divertido antecipar momentos? Acompanhamos em nossa sociedade adultos incentivando a criança a viver situações antecipadas, com agendas cheias de compromissos, celulares disponíveis nos momentos livres, com desafios propostos por jogos e situações solitárias, a ausência de brinquedos, de passeios a parques, de histórias com personagens que não aqueles sugeridos pela televisão. Precisamos ter a clareza dos ganhos e das perdas, a depender das condutas: incentivamos uma criança quando ela diz ter um namorado e lhe enviamos presentes? Deixamos as crianças decidirem pelos adultos? O que comer? Aonde ir? Em qual horário? Entre um jogo de tabuleiro e um computador achamos que o segundo estará a favor de mais aprendizagens? Compramos materiais duplicados para nossos filhos, evitando conflitos e/ou frustrações? Vale lembrar: o tempo passa muito depressa! O brincar e o conviver, com todos os desafios que isso representa, fazem a diferença.
A imitação, de forma geral, faz parte do brincar! A criança observadora e protagonista de múltiplas experiências identifica diferenças nas ações, fica curiosa em experimentar vozes, atitudes e gestos. Enquanto imita e brinca a criança compreende papéis e amplia sua visão de mundo. Também tem a oportunidade de mudar a realidade por meio da brincadeira, quando apresenta numa trama que vive habitualmente em sua vida um desfecho diferente, por exemplo. Nas brincadeiras as crianças desejam ser mães, pais, falam como seus professores ou repetem frases de seus filmes ou personagens preferidos. O brincar é universal, favorece o crescimento, conduz aos relacionamentos. A criança brinca, cria, imagina: coisas de criança!
Quem nunca calçou o sapato de salto alto de sua mãe ou vestiu a roupa enorme do pai, a camiseta de um time, uma gravata, um chapéu? E, depois, cuidadosamente, os guardou no lugar, não era seu, era “coisa de adulto”. Simplesmente brincadeira, algo que faz ser o outro durante um tempo… e quando os acessórios são suprimidos, a brincadeira é finalizada, e a criança volta a ser ela mesma. Mas quando a criança recebe um sutiã de seu tamanho, um sapato de salto alto de seu número, um batom ou esmalte de presente, que possa usar no dia a dia para ir a qualquer lugar, passa a não ser mais brincadeira. O que é do tamanho da criança diz ser feito para ela e a brincadeira passa a não ser mais tão almejada. Grande perda. Vamos pensar nas fontes deste mundo antecipado que ainda tenta nos fazer acreditar que este é o melhor para a criança. A mídia tem grande responsabilidade pelos inúmeros desejos passageiros nas ideias das crianças, pois são muitos os produtos apresentados, nem dá tempo de curtir algo que o desejo aparece de novo com uma novidade. E como todo dia é dia de ganhar algo em muitas famílias, é difícil ver uma criança com um brinquedo preferido, amado como um tesouro. Elas dizem PRECISAR ter tudo porque o outro tem? Ter em quantidade é um valor? Que tal conquistarmos o “ser”, pensando na formação de nossos pequenos!
E como saber o que é de criança? Tudo aquilo que não a coloca em risco, físico ou psicológico, mas que favoreça experiências diversas. Roupa de criança é roupa confortável, que lhe permita ter segurança onde quer que esteja, sem apertar ou limitar ações. A escolha dos sapatos segue a mesma linha, de segurança e conforto, sem riscos. Batom de criança é um batom que ela possa usar para brincar, mas nenhuma criança precisa maquiar-se todos os dias antes de algum evento.
Os lápis aquarela, por exemplo, são ótimos para pintar as unhas, desenhar no corpo e, com uma simples lavagem, podem ser retirados imediatamente. Quem orienta, decide, ajuda a criança na utilização adequada de materiais é o adulto.
…Na praia do mar… As crianças precisam ter tempo, espaço e permissão para serem crianças, para buscarem e encontrar seus mundos sem fim. Temos a certeza de que os adultos, com tantas histórias para contar de sua infância, desejam o mesmo para seus filhos… e precisamos fazê-lo, apesar de a maré de consumo que invade a infância poder torná-la mais curta!
¹ Publicado no International Journal of Psycho-Analysis, v.48, parte 3 (1967).