Instruções - Um manual de como não usar brinquedos
Sou brincante. Digo isso porque fui uma criança que brincava sem muita ocasião e me tornei uma jovem apaixonada por inventar. Me recordo de subir em árvores, pintar amarelinhas com telha na garagem de casa e fazer minhas bonecas de papel, sempre notei que de pouco se faz o mundo.
Por muita sorte nasci filha de educadora e nunca tive muitos brinquedos, daqueles que se compra em loja, circulando muito na minha casa. Apesar disso, muito nova já entendia a diferença entre brinquedos de menino e de menina, desejava para mim as bonecas, as embalagens cor-de-rosa e fantasias de princesa. Muito curiosamente tinha um melhor amigo que me emprestava seus carrinhos aos finais de semana e jogava futebol quase todos os dias com meu primo menino. Nunca fui repreendida, não pelos meus pais.
Um pouco mais velha, perdi o interesse em brincadeiras ditas masculinas, mergulhando a fundo no mundo cor-de-rosa. Só na universidade percebi o quanto fui condicionada à este movimento tão aprisionador. Hoje enxergo o quanto as brincadeiras disciplinam os corpos e constroem uma identidade de homem ou mulher com uma uniformidade moral que se adequa ao padrão ideal para se viver em sociedade.
O brinquedo é um instrumento utilizado para a construção de gênero, seja na escola, na família ou na comunidade em geral, pois já está presente na vida das crianças antes mesmo de seu nascimento, brinquedos são utilizados ativamente na construção da identidade de um sujeito infantil. Isto quer dizer que condicionamos seres potentes a se enquadrarem em padrões estabelecidos pelas suas condições biológicas.
O propósito do estudo feito daqui em diante é investigar as contribuições do objeto brinquedo para a construção e desconstrução de gênero e entender o por quê dessas duas realidades serem atreladas e quais são suas consequências.
O que é gênero?
Sabemos que no mundo pós-moderno, as definições do que é gênero e sexualidade se desdobraram em diferentes vertentes na antropologia, sociologia e psicologia. Portanto, não me atrevi a definir tamanha complexidade, analisei algumas conceituações em busca de encontrar uma que faça sentido à essa pesquisa e a apresento aqui.
Pode-se dizer que a ideia central do conceito de gênero nasceu com escritora francesa Simone de Beauvoir. Essa autora, uma das mais importantes feministas da história, foi a precursora daquilo que ficou conhecido como “Segunda Onda” do feminismo. Talvez o ponto mais importante da principal obra de Beauvoir, O Segundo Sexo (1949), possa ser resumido na seguinte frase:
“Não se nasce mulher, torna-se mulher.”
Ao mencionar isso, Beauvoir está chamando a atenção para as inúmeras construções sociais acerca de ser homem e, especialmente, de ser mulher. Na introdução de sua obra, Beauvoir inicia um questionamento muito frutífero: “O que é uma mulher?” para, em seguida, questionar se “ser mulher” é simplesmente possuir um útero. Ao contestar essa correspondência direta, Simone chega à seguinte conclusão:
“Todo ser humano do sexo feminino não é, portanto, necessariamente mulher; cumpre-lhe participar dessa realidade misteriosa e ameaçada que é a feminilidade.”
Podemos dizer então, que gênero é o sexo social definido, ou seja, gênero não é sinônimo de sexo. Enquanto o sexo é biológico, o gênero é construído historicamente, culturalmente e socialmente. Com isto quero dizer que nascemos machos ou fêmeas, mas nos criamos, ou melhor somos transformados em homens ou mulheres. Incorporamos o gênero masculino ou feminino, através do aprendizado de comportamentos, preferências, interesses, hábitos, formas de pensar e vestir relacionadas a “ser homem” e “ser mulher”. Todos esses aspectos seriam simplesmente somados a um corpo que, por estar preso à “natureza humana”, é imutável, fixo e bipolar, separando o masculino do feminino.
Acho válido ressaltar que, apesar de considerar esse conceito como adequado para embasar esse trabalho, algumas correntes feministas consideram essa teoria insuficiente para entender as complexidades das relações de gênero.
O que é brinquedo?
Uma das primeiras coisas que aprendemos a fazer quando nascemos é aprender a brincar e a medida que crescemos vamos aumentando nossa intimidade com os brinquedos, que se tornam objetos fundamentais para a construção da nossa identidade. A brincadeira de faz-de-conta foi instrumento de estudo para alguns autores como Elkonin.
A base do jogo de faz-de-conta é de natureza e origem social, tornando-se um meio pelo qual a criança assimila e recria a experiência sócio-cultural dos adultos. Para ele, os temas dos jogos das crianças são extremamente variados e são os reflexos das condições concretas vivenciadas pelas crianças.
O autor entende que por meio do brinquedo a criança se apropria do mundo real, domina conhecimentos, se relaciona e se integra culturalmente. Ao brincar e criar uma situação imaginária, a criança pode assumir diferentes papéis: ela pode se tornar um adulto, outra criança, um animal, ou um herói televisivo.
Através dos brinquedos e brincadeiras, a criança tem oportunidade de criar um diálogo com o “mundo adulto”, onde ela estabelece seu controle interior, sua autoestima, confiança consigo mesma e com os outros ao seu redor.
Por que os brinquedos são separados por gênero?
Segundo Lais Fontenelle, mestre em psicologia clínica e ativista pelos direitos da infância, não existem brinquedos de menina e de menino:
“Você vai dizer que meninas tendem a gostar mais disso, mas isso é muito mais cultural do que vocacional. E essa marca cultural foi sendo abocanhada cada vez mais pelo mercado para vender e dividir em nichos.”
Entrando em qualquer loja de brinquedos, online ou offine, assistimos a clara divisão entre produtos de menino e produtos de menina. Na verdade as placas indicativas não seriam necessárias, as prateleiras com embalagens predominantemente rosa certamente é a seção feminina, e as prateleiras azuis e verdes, meninos.
Embora vista como “tradicional”, muito da segmentação por gênero em brinquedos é um fenômeno recente. Muitos especialistas de educação infantil apontam que a sofisticação do mercado infantil se acentuou de fato nas últimas décadas, sendo pioneiros os Estados Unidos nos anos 80, mercado onde a disseminação da TV a cabo, com canais exclusivamente infantis, e a desregulamentação da publicidade para crianças, contribuiu para a proliferação de produtos segmentados.
Encontrei esse site de brinquedos online que exemplifica a problemática levantada. No menu para compra encontramos os filtros meninos e meninasjunto com bebês, marcas e personagens. Abrindo as abas menino e menina, fica claro o critério utilizado para a separação: cores, principalmente, e função da brincadeira. Para as meninas uma Barbie e um patinete cor-de-rosa ilustram a seção, para os meninos um Batman e um robô personagem de um filme de ficção o científica.
O estereótipo é muito óbvio: brinquedos de construção e tecnologia de ação são predominantemente comercializados para meninos enquanto brinquedos artesanais, jogos de papel social e doméstico são predominantemente comercializados para meninas.
Encontrado pelo filtro meninos no site ToyMania, Alquimia trata-se de um brinquedo com instruções e reagentes para experimentos químicos. A realidade retratada na embalagem é a de um cientista representado por um menino brincando com tubos de ensaio, no mais, ângulos e linhas retas predominam na embalagem que tem como cores predominantes vermelho, preto e cinza.
Indicada na Loja BrinkCenter como um brinquedo masculino, Nerf é uma arma que lança projéteis por quem brinca. Na embalagem, um homem em posição de combate portanto, sua arma é a imagem mais significativa. Novamente, ângulos e linhas retas predominam na embalagem predominantemente azul.
Encontrado pelo filtro meninas no site ToyMania, Baby Alive é uma boneca que interage com sua “mamãe” — como descrito em suas publicidades. A embalagem tem como elemento principal o objeto boneca, mas retrata em algumas fotos a realidade de uma mãe representada por uma menina criança. Azul e rosa são as cores predominantes, com molduras arredondadas e ornamentadas.
Indicada na Loja BrinkCenter como um brinquedo feminino, master kitchen trata-se de um brinquedo que simula uma realidade. Na embalagem, uma chefe de cozinha é representada por uma menina criança. Como cores predominantes temos rosa e roxo em formas arredondadas e um elemento complexo contorna o nome do brinquedo
Observações
SMXLL
Atentei-me para embalagens que tinham fotografias com referência a situações “adultas”. Muitos outros brinquedos apresentavam embalagens sem fotografias, mas, mesmo sem elas poderíamos notar um universo feminino ou masculino, pelas cores, principalmente, mas também pelas formas — o mundo feminino de brinquedos tem formas arredondadas, muitos ornamentos, as embalagens são quase que macias e suaves. Já a dos meninos, tem formas anguladas, que demonstram dinamicidade e rigidez.
Como exemplo, usarei a marca Nerf de brinquedos citada previamente. Claramente inserida no universo masculino, a marca lançou há algum tempo a linha “Rebel, armas para as meninas”. Ou seja, por mais que a criança menina queira um objeto “masculino”, esse objeto deve estar inserido no universo feminino, reforçando cada vez mais o estereótipo desses mundos tornando-os divergentes.
Sem Gênero
Há uma inquietude, não apenas minha, mas de uma grande parcela da sociedade acerca do tema que trato por aqui. Por isso, algumas marcas de brinquedos vêm transformando suas embalagens e catálogos representando que ambos os gêneros podem (e devem) utilizar o mesmo brinquedo.
Além dos brinquedos clássicos, existe ainda um novo nicho, os brinquedos que não tangenciam qualquer desses preconceitos, seja por cor ou pela ação que o brinquedo estimula. Os chamados brinquedos sem gênero usam figuras “não convencionais” e “cores neutras” para alcançar seu objetivo.
Eu Amo Papelão — A marca de brinquedos usa e abusa da imaginação das crianças permitindo que elas personalizem seu brinquedo, tirando das vistas da criança coisas e conceitos pré-estabelecidos.
Gandaia de Brincar — Sem regras ou burocracias, o jogo de montar vira diversão para qualquer criança que queira inventar um jeito de equilibrar as peças do quebra-cabeças.
Conclusão
“Criamos comportamentos sociais ao estereotipar o tipo de brinquedo com os quais os meninos e as meninas brincam quando pequenos”. — Athene Donald
Um retrato disso são dados alarmantes sobre o impacto desses estereótipos no mercado de trabalho, mais a frente: segundo a UNESCO apenas 30% dos cientistas do mundo são mulheres, enquanto que no Brasil, segundo o IBGE, 90% das mulheres são responsáveis pelas tarefas domésticas, contra 40% dos homens.
Não é de minha alçada concluir que brinquedos são os responsáveis pelos dados vistos acima, mas sim, mostrar que esses brinquedos são apenas o reflexo da sociedade em que vivemos, e que se não olharmos para eles como limitadores e aprisionadores, estaremos para sempre insistindo em estereótipos sociais criados para manter mulheres em situação de submissão e homens como viris e insensíveis.
Sei que criar novos parâmetros não é uma tarefa simples, mas entendo que aspectos éticos para o público infantil devem ser estendidos para além da questão do estímulo ao consumo. Reafirmar questões culturais que permeiam preconceitos e limitações através do público infantil é propagar estas afirmações durante as gerações. Nesse sentido, acredito não só nos brinquedos sem gênero, mas também em brinquedos que permitam o desenvolvimento integral de uma criança, possibilitando a livre imaginação e autonomia. Deixo aqui meu voto de confiança na minha geração e nas seguintes (designers e não designers) para transformar o mercado de brinquedos no Brasil.
*Luna é estudante de design apaixonada por educação e tecnologia. Confiante na potência transformadora dessa união de saberes. Pronta para mudar o mundo!